C A P Í T U L O V I I
Aí Vem o Rei!
SE ESTE livro fosse escrito no século X ou XI teria
sido muito mais fácil para o autor. Grande parte do material aqui exposto é baseado
no estudo de escritores muito antigos, frequentemente em língua estrangeira —
latim, francês antigo ou moderno, alemão antigo ou moderno. O historiador
medieval, porém, folheando os documentos do passado, verificaria serem todos
escritos na língua que melhor conhecia — o latim. Não faria diferença nenhuma se
ele morasse em Londres, Paris, Hamburgo, Amesterdã ou Roma. O latim era língua
universal dos eruditos.. As crianças naquela época não estudavam inglês,
alemão, holandês ou italiano. Estudavam latim. Falava-se inglês, alemão etc.,
mas essas línguas só mais tarde passaram a ser escritas. O monge espanhol com
sua Bíblia na Espanha lia as mesmas palavras latinas que eram lidas pelos
monges de um mosteiro inglês.
Nas universidades do período encontravam-se
estudantes de toda a Europa ocidental conversando e estudando juntos sem a menor
dificuldade. A.s universidades eram instituições verdadeiramente
internacionais.
A religião também era universal. Quem se
considerasse cristão nascia na Igreja Católica. Não havia outra. E,
espontaneamente ou a contragosto, era necessário pagar impostos a essa Igreja e
sujeitar-se às suas regras e regulamentos. Os serviços religiosos em
Southampton muito se assemelhavam aos de Gênova. Não havia limites estatais à
religião.
Muita gente pensa hoje que as crianças nascem com o
instinto de patriotismo nacional. Evidentemente isso não é verdade. O
patriotismo nacional.vem em grande parte de se ler e ouvir falar constantemente
nos grandes feitos dos heróis nacionais.
As crianças do século X não encontravam em seus
livros didáticos desenhos de navios de seu país afundando os de um país inimigo.
Por uma razão muito simples: não havia países, tal como os conhecemos hoje.
A indústria, como o leitor se lembrará de ter lido
no capítulo anterior, deixou de ser doméstica e passou à cidade Tornou-se local,
embora não fosse nacional. Para os comerciantes de Chester, na Inglaterra, as
mercadorias londrinas que pudessem interferir no seu monopólio eram tão
“estrangeiras” como as procedentes de Paris.. O mercador em grande escala
sentia o
mundo como sua província, e tentava com o mesmo
interesse fincar pé num ou noutro.
Mas em fins da Idade Média, no decorrer do século
XV, tudo isso se modificou. Surgiram nações, as divisões nacionais se tornaram
acentuadas, as literaturas nacionais fizeram seu
aparecimento, e regulamentações nacionais para a
indústria substituíram as regulamentações locais. Passaram a existir leis nacionais,
línguas nacionais e até mesmo Igrejas nacionais. Os
homens começaram a considerar-se não como cidadãos
de Madri, de Kent ou de Paris, mas como da Espanha, Inglaterra ou França.
Passaram a dever fidelidade não à sua cidade ou ao senhor feudal, mas ao rei,
que é o monarca de toda uma nação.
Como ocorreu essa evolução do Estado nacional?
Foram muitas as razões — políticas, religiosas, sociais, econômicas. Livros
inteiros foram escritos sobre esse interessante assunto.
Temos espaço para examinar apenas algumas causas —
principalmente econômicas. A ascensão da classe média é um dos fatos
importantes desse período que vai do século X ao século XV. Modificações nas formas
de vida provocaram o crescimento dessa nova classe e
seu advento trouxe novas modificações no modo de
vida da sociedade. As antigas instituições, que haviam servido a uma finalidade
na velha ordem, entraram em decadência; novas institui-
ções surgiram, tomando seu lugar. É uma lei da
História.
O mais rico é quem mais se preocupa com o número de
guardas que há em seu quarteirão. Os que se utilizam das estradas para enviar
suas mercadorias ou dinheiro a outros lugares são
os que mais reclamam proteção contra assaltos e
isenção de taxas de pedágio. A confusão e a insegurança não são boas para os
negócios. A classe média queria ordem e segurança.
Para quem se poderia voltar? Quem, na organização
feudal, lhe podia garantir a ordem e a segurança? No passado, a proteção era
proporcionada pela nobreza, pelos senhores feudais.
Mas fora contra as extorsões desses mesmos senhores
que as cidades haviam lutado. Eram os exércitos feudais que pilhavam, destruíam
e roubavam. Os soldados dos nobres, não recebendo pagamento regular pelos seus
serviços, saqueavam cidades e roubavam tudo o que podiam levar. As lutas entre
os senhores guerreiros frequentemente representavam a desgraça para a população
local, qualquer que fosse o vencedor. Era a presença de senhores diferentes em
diferentes lugares ao longo das estradas comerciais que tornava os negócios tão
difíceis. Necessitava-se de uma autoridade central, um Estado nacional. Um
poder supremo que pudesse colocar em ordem o caos feudal. Os velhos senhores já
não podiam preencher sua função social. Sua época passara. Era chegado o
momento oportuno para um poder central forte.
Na Idade Média, a autoridade do rei existia
teoricamente, mas de fato era fraca. Os grandes barões feudais eram
praticamente independentes. Seu poderio tinha de ser controlado e
realmente o foi.
Os passos dados pela autoridade central para
tornar-se capaz de exercer o poder nacional foram lentos e irregulares. Não se assemelharam
a uma escada, com um degrau sobre outro, levando firmemente uma direção
definida, mas sim uma estrada acidentada, com muitas idas e vindas. Não levou
um, dois, ou cinqüenta ou cem anos. Levou séculos — mas, finalmente, tornouse
realidade.
Os senhores começaram a enfraquecer por terem
perdido grande parte de seus bens em terras e servos. Sua força havia sido
desafiada e parcialmente controlada pelas cidades. E em
certas regiões, em sua constante guerra entre si,
estavam realizando o extermínio mútuo.
O rei fora um aliado forte das cidades na luta
contra os senhores. Tudo o que reduzisse a força dos barões fortalecia o poder
real. Em recompensa pela sua ajuda, os cidadãos estavam prontos a auxiliá-lo
com empréstimos de dinheiro. Isso era importante, porque com o dinheiro o rei
podia dispensar a ajuda militar de seus vassalos. Podia contratar e pagar um
exército pronto, sempre a seu serviço, sem depender da lealdade de um senhor.
Seria também um exército melhor, porque tinha uma única ocupação: lutar. Os
soldados feudais não tinham preparo, nem organização regular que lhes
permitisse atuar em conjunto, com harmonia. Por isso, um exército pago para
combater, bem treinado e disciplinado, e sempre pronto quando dele se necessitava,
constituía um grande avanço.
Além disso, o progresso técnico nas armas militares
também exigia um novo tipo de exército. A pólvora e o canhão estavam começando
a entrar em uso, e seu emprego eficiente demandava preparo. E ao passo que o
guerreiro feudal podia levar sua arma dura, não lhe seria fácil carregar canhão
e pólvora.
O rei foi grato aos grupos comerciais e industriais
que lhe possibilitaram contratar e pagar um exército permanente, bem equipado
com as últimas armas. Repetidas vezes recorreu à nascente classe de homens de dinheiro,
para empréstimos e doações. Eis aqui um exemplo, tomado ao século XIV, quando o
rei da Inglaterra pediu ajuda à cidade de Londres: “Sir Robert
de Asheby, representando o Rei, foi à
Municipalidade de Londres e em nome do Rei convocou o Alcaide e os Intendentes
da Cidade... ...a comparecerem perante o Rei Nosso Senhor e o seu
Conselho... ...E o Rei então fez oralmente menção
das despesas que realizara em sua guerra em países além do mar, e que ainda teriam
de ser feitas, e pediu-lhes um empréstimo de vinte mil libras esterlinas...
...Unanimemente eles se prontificaram a emprestar-lhe cinco mil marcos, soma
que, segundo disseram, não poderiam ultrapassar. Ao que o Rei Nosso Senhor
rejeitou imediatamente, ordenando ao Alcaide, Intendentes e outros que se lembrassem
do voto de lealdade que lhe deviam, e pensassem melhor sobre o assunto em
questão... ...E embora isso fosse difícil, eles concordaram em emprestar cinco
mil libras ao Rei Nosso Senhor, o que foi por este aceito. Doze pessoas foram
escolhidas e juradas, para procurar todos os homens da cidade mencionada, e
seus subúrbios, e todos segundo sua condição, para levantar a dita soma de
cinco mil libras e emprestá-la ao Rei Nosso Senhor.”
Não se pense nem por um minuto que os donos do
dinheiro o viam apartar-se com satisfação. Nada disso. Fizeram esse empréstimo,
e outros, ao rei porque dele recebiam em compensação vantagens bem definidas.
Assim, por exemplo, era realmente uma vantagem para o comércio ter leis, como a
seguinte, aprovadas por uma autoridade central (1389): “Determinamos que uma
medida e um peso sejam aceitos em todo o Reino da Inglaterra e todo aquele que
usar qualquer outro peso e medida será aprisionado por metade de um ano.”
Além disso, o simples fato de se verem livres dos
soldados assaltantes do pequeno barão feudal valia o dinheiro que davam.
Estavam dispostos a pagar seu apoio a uma autoridade que
os libertasse das exigências irritantes e da
tirania de numerosos superiores feudais. No final das contas, era econômico
ligar-se a um chefe forte, que podia fazer impor leis como a seguinte, aprovada
na França, em 1439: ‘Para eliminar e remediar e pôr fim aos grandes excessos e pilhagens
feitas e cometidas por bandos armados, que há muito vivem e continuam vivendo
do povo... ...
“O Rei proíbe, sob pena de acusação de
lesa-majestade e perda para sempre, para si e sua posteridade, de todas as
honras e cargos públicos, e o confisco de sua pessoa e suas posses, a
qualquer pessoa, de qualquer condição, que
organize, conduza, chefie ou receba uma companhia de homens em armas, sem permissão,
licença e consentimento do Rei...
“Sob as mesmas penalidades, o Rei proíbe a todos os
capitães e homens de guerra, que ataquem mercadores, trabalhadores, gado ou
cavalos ou bestas de carga, seja nos pastos ou em carroças, e não perturbem,
nem às carruagens, mercadorias e artigos que estiverem transportando, e não
exigirão deles resgate de qualquer forma; mas sim que tolerarão que trabalhem,
andem de uma parte a outra e levem suas mercadorias e artigos em paz e
segurança, sem nada lhes pedir, sem criar-lhes obstáculos ou perturbá-los de
qualquer forma.”
Anteriormente, a renda do soberano consistira de
proventos oriundos de seus domínios pessoais. Não havia sistema nacional de
impostos. Em 1439, na França, o rei introduziu a taille, imposto regular cm
dinheiro. No passado, como o leitor se lembrará, os serviços dos vassalos
haviam sido pagos com doação de terras. Com o crescimento da economia
monetária, isso deixou de ser necessário. Os impostos podiam ser recolhidos em
dinheiro, em todo o reino, por funcionários reais pagos não em terra, mas em
dinheiro. Funcionários assalariados, distribuídos por todo o país, podiam
realizar a tarefa de governar em nome do rei — coisa que no período feudal
tinha de ser feita pela nobreza, paga em terras. A diferença era importante.
Era evidente aos soberanos que seu poder dependia
das finanças. Tornava-se cada vez mais claro também que o dinheiro só fluía
para as arcas reais na medida em que o comércio e a indústria prosperavam. Por
isso, os reis começaram a preocupar-se com o progresso do comércio e da
indústria. Os regulamentos das corporações, que pretendiam criar e manter um
monopólio para um pequeno grupo em cada cidade, passaram a ser considerados.
como cadeias à expansão daqueles dois ramos de atividade.
Em função da nação como um todo, as excessivas e
contraditórias regulamentações locais teriam de ser postas de lado, terminando
com isso o ciúme entre as cidades. Era ridículo, por
exemplo, que “fosse necessária uma ordem do
Príncipe em 1443 para abrir a Feira de Couro de Frankfurt aos Sapateiros de Berlim.”
78 Com o crescente poder da monarquia nacional, os reis começaram a derrubar os
monopólios locais, no interesse de toda a nação. Uma das Disposições do Reino
da Inglaterra, de 1436, diz: “Considerando que os Mestres, Responsáveis e Membros
das Corporações, Fraternidades e outras Associações... ...se avocam muitos
regulamentos ilegais e absurdos... ...cujo conhecimento, execução e correção
pertencem exclusivamente ao Rei... ...O mesmo Rei Nosso Senhor, a Conselho e
com permissão dos Conselheiros Espirituais e Temporais, e a pedido dos
mencionados Comuns, ordena, pela Autoridade do mesmo Parlamento, que os
Mestres, Responsáveis e Membros de todas as corporações, fraternidades ou
companhias... ...apresentem... todas as suas Cartas Patentes e Estatutos para
serem registrados perante os Juízes de Paz... ...e ainda ordena e proíbe, pela
Autoridade acima mencionada, que doravante tais Mestres, Responsáveis ou
Membros façam uso de regulamentos que não tenham sido primeiramente discutidos
e aprovados como bons e justos pelos Juízes de Paz. Uma lei de muito maior
alcance, aprovada pelo rei da
França, mostra o crescente poder do monarca naquele
país: “Carlos, pela graça de Deus Rei da França... depois de demorada
deliberação de nosso Grande Conselho... ...ordena que em nossa dita cidade de
Paris não haverá, doravante, mestres de oficio ou comunidades de qualquer
tipo....Mas desejamos e ordenamos que em todo oficio serão escolhidos pelo
nosso
Preboste... ...certos elementos antigos do dito
oficio... e que portanto estão proibidos de realizar qualquer reunião como
associação de oficiais ou outras... a menos que tenham o nosso consentimento,
permissão e licença, ou consentimento de nosso Preboste... sob pena de serem
tratados como rebeldes e desobedientes de nós e de nossa coroa da França, e de
perda de direitos e possessões.”
Não foi tarefa pequena reduzir os privilégios
monopolistas de cidades poderosas. Nos países em que elas eram realmente fortes,
como na Alemanha e Itália, somente séculos depois se
estabelecia uma autoridade central com poder
bastante para controlar tais monopólios. É essa uma das razões pelas quais as comunidades
mais poderosas e ricas da Idade Média foram as
últimas a atingir a unificação necessária às novas
condições econômicas. Em outros territórios, embora algumas cidades resistissem
a essa limitação de seu poderio, indo ao ponto de lutarem, o ciúme e o ódio
impediram que se unissem contra as forças nacionais reunidas — e, felizmente
para elas, foram derrotadas. Na Inglaterra, França, Holanda e Espanha, o Estado
substituiu a cidade como unidade de vida econômica.
É certo que muitas cidades e corporações tentaram
com empenho conservar seus privilégios exclusivistas. Quando o conseguiram, foi
sob a supervisão da autoridade real. O Estado nacional predominava porque as
vantagens oferecidas por um governo central forte, e por um campo mais amplo de
atividades econômicas, eram do interesse da classe média como um todo. Os reis sustentavam-se
com o dinheiro recolhido da burguesia, e dependiam, cada vez mais, de seu
conselho e ajuda no governo de seus crescentes reinos. Os juízes, ministros e
funcionários vinham, em geral, dessa classe. Na França do século XV, Jacques Coeur,
banqueiro de Lyon e um dos homens mais ricos da época,. tornou-se conselheiro
real. Na Inglaterra dos Tudor, Thomas Cromwell, advogado, e Thomas Gresham,
merceeiro, chegaram a ministros da Coroa. “Um pacto tácito foi concluído entre ela
[a realeza] e a burguesia industrial de empreendedores e empregadores.
Colocavam a serviço do Estado monárquico sua influência política e social, os
recursos de sua inteligência e sua riqueza. Em troca, o Estado multiplicava
seus privilégios econômicos e sociais. Subordinava a ela os trabalhadores
comuns, mantidos nessa posição e obrigados a uma obediência rigorosa.”
Era um exemplo perfeito do provérbio “Uma mão lava
a outra”. Um interessante sinal dos tempos, na Inglaterra, foi o afastamento
dos venezianos e dos mercadores alemães da Liga Hanseática, que tinham uma
“estação” em Londres. Os estrangeiros haviam, sempre, controlado a importação e
exportação do país. Haviam comprado a vários reis, sucessivamente, seus
lucrativos privilégios comerciais. Mas nos séculos XV e XVI os comerciantes ingleses
começaram a levantar a cabeça. O grupo denominado Mercadores Aventureiros,
principalmente, era uma associação particularmente ativa, que desejava arrancar
das mãos dos estrangeiros esse comércio proveitoso. A princípio não realizaram grandes
progressos, porque o rei queria dinheiro em troca de concessões, e porque
medidas drásticas poderiam provocar problemas com outros governos. Mas os
Mercadores Aventureiros ingleses insistiram, e em 1534 os venezianos perderam
seus privilégios, e seis anos mais tarde a Liga Hanseática reclamava ao rei: “Muito
embora a concessão tivesse sido feita há muito tempo aos mercadores da Liga
Hanseática, e essa mesma concessão tivesse
sido renovada e permitida por Vossa Excelsa
Majestade, para que nenhuma forma de imposto, pensão ou pagamento indevido seja
cobrada das pessoas, mercadorias ou produtos dos ditos mercadores, não obstante
tudo isso, a favor dos pisoeiros e tosquiadores de Londres adotaram-se medidas
tais que nenhum mercador da Hanseática ousará embarcar ou retirar do Reino da
Inglaterra quaisquer roupas, tecidas ou não, sob pena de perda das mesmas.”
Como a Liga Hanseática levasse a lã inglesa para
ser transformada em roupas em Flandres e na Alemanha, a florescente indústria
de roupas inglesa apoiou os Mercadores Aventureiros.
Lutando unidos (com a ajuda de Gresham, merceeiro,
em boa hora colocado como ministro da Coroa), ganharam a parada. Os privilégios
da Hanseática Alemã foram gradualmente reduzidos
e, em 1597, a sede londrina da antes poderosa Hansa
foi finalmente fechada.
Os camponeses que desejavam cultivar seus campos,
os artesãos que pretendiam praticar seu oficio e os mercadores que ambicionavam
realizar seu comércio — pacificamente — saudaram essa formação de um governo
central forte, bastante poderoso pa ra substituir os numerosos regulamentos
locais por um regulamento único, de transformar a desunião em unidade.
Entre as causas que contribuíram para essa união
está o sentimento de nacionalidade então surgido. Isso se evidencia na vida,
luta e morte de Jeanne d’Arc. Na França, os senhores feudais eram
particularmente fortes, e, durante a Guerra dos Cem Anos com a Inglaterra, o
mais poderoso, o Duque de Borgonha, aliou-se aos ingleses e impôs várias
derrotas sérias ao rei francas. Jeanne, que desejava ver a Borgonha como parte
da França, escreveu ao Duque: “Jeanne, a Donzela, deseja que estabeleçais...
...longa, boa e segura paz com o Rei de França... ...em toda a humildade vos
peço, imploro e exorto a que não façais mais guerras no sagrado reino de França.”
Foi inspirando ao exército francas entusiasmo e
confiança, e uma crença no sentimento de serem todos franceses, tornando a
causa do rei a causa de todos os franceses, que Jeanne
prestou serviço à sua pátria, incitando muitos a
serem tão fanáticos pela causa da França quanto ela. O soldado, a serviço do senhor
feudal, que ouvisse Jeanne afirmar que “Nunca vi correr sangue francas, mas meu
cabelo se eriça de horror”, 84podia ver além de seu senhor e pensar em sua
fidelidade à França, ao “Meu País”. Assim, o localismo foi suplantado pelo
nacionalismo, e a era de um soberano poderoso, à frente de um reino unido, teve
início.
Bernard Shaw, em sua Santa Joana, excelente peça
sobre a Donzela, tem um trecho importante sobre os efeitos desse nascente
espírito de nacionalismo. Um clérigo e um senhor feudal ingleses estão
discutindo as habilidades militares de um senhor francês:
“O Capelão: Ele é apenas um francas, meu senhor. “O
Nobre: Um francês! Onde arranjou você essa expressão?
Então esses borgonheses, bretões, picardos e
gascões começam a se intitular franceses, tal como nossos companheiros estão
começando a se chamar ingleses? Falam da França e Inglaterra como de seus
países. Imagine, país deles! Que vai ser de nós, se essas ideias se
generalizarem? “O Capelão: Por que, senhor? Poderá isso nos prejudicar? “O Nobre: O homem não pode servir a dois
senhores. Se essa idéia de servir ao país tomar conta do povo, adeus autoridade
dos senhores feudais, e adeus autoridade da Igreja.”
Esse nobre de visão ampla tinha, evidentemente,
razão. O
único rival poderoso que o soberano tinha pela
frente era a Igreja, e seria inevitável o choque dos dois. Para os monarcas
nacionais, não havia possibilidade de dois chefes de um mesmo Estado. E o poder
de que dispunha o papa tornava-o muito mais perigoso do que qualquer senhor
feudal. O papa e o rei brigaram várias vezes. Houve, por exemplo, a questão de
quem teria o direito de nomear bispos e abades, quando ocorresse uma vaga.
Isso tinha grande importância, porque tais cargos
eram compensadores — o dinheiro vinha, naturalmente, da grande massa popular
que pagava impostos à Igreja. Era muito dinheiro, e tanto o rei como o papa
desejavam que fosse parar nas mãos de amigos. Os reis, evidentemente, lançavam
olhares cobiçosos sobre esses cargos rendosos — e disputavam aos papas o
direito de fazer tais indicações.
A Igreja era tremendamente rica. Calcula-se que
possuía entre um terço e metade de toda a terra — e, não obstante, recusa va-se
a pagar impostos ao governo nacional. Os reis necessitavam de dinheiro,
parecia-lhes que a fortuna da Igreja, já então enorme e aumentando sempre,
devia ser taxada para ajudar a pagar as despesas da administração do Estado.
Outra razão de luta foi o fato de que certos casos
eram julgados nos tribunais religiosos, e não nos tribunais normais. Frequentemente,
a decisão da Igreja era contraria à decisão do rei.
Outro ponto importante era saber a quem cabia o
dinheiro de multas e de suborno: à Igreja ou ao Estado?
Houve também a dificuldade provocada pelo direito
que o papa se arrogava de poder interferir até mesmo nos assuntos internos de
um país. A Igreja era, com isso, um rival político do soberano.
Existia, portanto, um poder supernacional,
dividindo a fidelidade dos súditos do rei, e fabulosamente rico em terras e
dinheiro; as rendas dessas propriedades, ao invés de serem encaminhadas ao
tesouro real, deixavam o país como pertencentes a Roma. O rei não estava só
nessa resistência à Igreja. O Papa Bonifácio VIII escrevia em 1296: “Que o
laicato seja amargamente hostil ao clero é questão de tradição antiga,
plenamente confirmada pela experiência dos tempos modernos”.
Os muitos abusos da Igreja não podiam passar
despercebidos. A diferença entre seus ensinamentos e seus atos era bastante
grande, e até os mais broncos podiam perceba-la. A concentração do dinheiro
obtido por todos os métodos, quaisquer que fossem, era comum. Enéias Sílvio,
mais tarde Papa Pio II, escreveu: “Nada se consegue em Roma sem dinheiro.”87 E
Pierre Berchoire, que viveu na época de Chaucer, escreveu também: “Não é com os
pobres que o dinheiro da Igreja é gasto, mas com os sobrinhos favoritos e os
parentes dos padres.”88
Uma canção do século XIV mostra o sentimento
popular em relação a todos os tipos de sacerdotes, de alto a baixo:
I see the pope his sacred trust berray
For while the rich his grace can gain alway,
His favours from the poor are aye withholden.
He strives to gather wealth as best he may,
Forcing Christ’s people blindly to obey,
So that he may repose in garments golden...
No better is each honoured cardinal.
From early morning’s dawn to evening’s fall
Their time is passed in eagerly contriving
To drive some bargain foul with each and all...
Our bishops, too, are plunged in similar sin,
For pitilessly they flay the very skin
From all their priests who chahce to have fat livings.
For gold their seal official you can win.
To any writ, no matter what’s therein.
Sure God alone can make them stop their thievings...
Then as for. all the priests and minor clerks,
There are, God knows, too many of them whose works
And daily life belie their daily teaching...
For, learned or ignorant, they’re ever bent
To make a traffic of each sacrament
The mass’s holy sacrifice included...
‘Tis true the monks and friars make ample show
Of rules austere which they all undergo,
But this vainest is of all pretences.
In sooth, they full twice as wel we know,
As e’er they did at home, despite their vow
And all their mock parade of abstinences...
Os muitos escândalos e abusos da Igreja eram
públicos e notórios muitos séculos antes que Martinho Lutero pregasse as suas
“Noventa e Cinco Teses” à porta da Igreja, em Wittenberg,
em 1517. Houve reformadores religiosos antes da
Reforma Protestante. Por que, então, a separação da Igreja Católica ocidental e
o estabelecimento de igrejas nacionais em lugar da Igreja universal única,
ocorreu nesse momento, e não antes?
Os primeiros reformadores religiosos, ao contrário
de Lutero, Calvino e Knox, cometeram o erro de tentar reformar mais do que a
religião. Wycliffe fora, na Inglaterra, o líder espiritual
da Revolta Camponesa, e Hus, na Boêmia, não só
protestara contra Roma, como também inspirara um movimento camponês de caráter
comunista, ameaçando o poder e os privilégios da nobreza. Isso significava,
decerto, que tais movimentos foram combatidos não só pela Igreja, mas também
pelas autoridades seculares e, portanto, que foram esmagados. Lutero e os reformadores
que o seguiram não comprometeram o apoio da classe dominante pregando doutrinas
perigosas de igualdade. Lutero não era um radical. Não comprometeu sua
oportunidade de êxito colocando-se ao lado dos oprimidos. Pelo contrário,
quando, pouco depois de iniciada sua reforma, irrompeu na Alemanha uma revolta
generalizada de camponeses, em parte sob a influência de seus ensinamentos, ele
ajudou a sufocá-la. Esse rebelde da Igreja podia dizer: “Estarei sempre ao lado
dos que condenam a rebelião e contra os que a provocam.”90 Esse reformador, tão
indignado contra os órgãos governamentais da Igreja, escreveu: “Deus prefere
que existam os governos, por piores que sejam, do que permitir à ralé que se
amotine, por mais razão que tenha.” 91 Enquanto os camponeses revoltados de
1525 gritavam: “Cristo fez livres todos os homens”, Lutero estimulava os nobres
a aniquilá-los, com estas palavras: “Aquele que mata um rebelde... ...faz o que
é certo... ...Portanto, todos os que puderem devem punir, estrangular ou
apunhalar, secreta ou publicamente... ...Os que perecerem nessa luta devem realmente
ser considerados felizes, pois nenhuma morte mais nobre poderia ocorrer a
ninguém.”
Uma das razões, portanto, do êxito de Lutero foi
não cometer o engano de tentar derrubar os privilegiados. Outra razão
importante para o advento da Reforma naquele preciso momento
está no fato de que Lutero, Calvino e Knox apelavam
para o espírito nacionalista de seus adeptos, num período em que esse sentimento
crescia. Como a oposição religiosa a Roma coincidia com os interesses do
nascente Estado nacional, tinha possibilidades de êxito.
Naquela época, quando a luta do Estado nacional
contra a autoridade papa! se estava tornando cada vez mais aguda, o “Discurso à
Nobreza Alemã” de Lutero encerrava esse conselho caro aos príncipes: “Porquanto
o poder temporal foi concedido por Deus para a punição dos maus e a proteção
dos bons, devemos permitir que ele cumpra seu dever em toda a Cristandade, sem
respeito a pessoas, quer atinja papas, bispos, padres, monges, freiras ou quem
quer que seja.” 93 Parte desse dever, sugere astutamente, é acabar com o
controle pelos estrangeiros, e — insinua — tomar os tesouros e terras da
Igreja. Esse último ponto é importante. “Acredita-se que mais de trezentos mil
florins são enviados da Alemanha a Roma todo ano, sem qualquer razão... ...Há
muito os imperadores e príncipes da Alemanha permitiram ao papa recolher
annates de todos os feudos alemães, ou seja, a metade da renda do primeiro ano
de todos os feudos....e como os annates estão sofrendo vergonhosos abusos...
...eles [os príncipes] não devem permitir que suas
terras e seu povo sejam tão lamentavelmente e injustamente despojados e arruinados:
por meio de uma lei imperial ou nacional, devem conservar no país os annates,
ou aboli-los totalmente.”
Diga-se a um grupo de pessoas que não só têm o
direito como o dever de expulsar o estrangeiro poderoso que vem desafiando sua
autoridade, em seu próprio país; acene-se para tal grupo a enorme riqueza do
estrangeiro como prêmio a ser colhido quando ele for expulso — e certamente
haverá fogo. A Igreja teria perdido seu poder mesmo que a Reforma Protestante
não tivesse ocorrido. De fato, a Igreja já havia perdido esse poder, pois sua
utilidade se reduzia. Antes, era bastante forte para propiciar à sociedade um
certo alívio das guerras feudais, impondo a Trégua de Deus; agora, o rei estava
em melhores condições para sustar essas pequenas guerras. Antes, a Igreja tinha
controle completo da educação; agora, surgiam escolas independentes fundadas
por mercadores que haviam prosperado. Antes, o direito da Igreja fora supremo;
agora, o velho direito romano, mais adequado à necessidade de uma sociedade
comercial, fora ressuscitado; antes, a Igreja era a única que dispunha de
homens cultos, capazes de conduzir os negócios do Estado; agora, o soberano
podia confiar numa nova classe de pessoas treinadas no movimento comercial e
consciente das necessidades do comércio e da indústria do país.”
Esse novo grupo, a nascente classe média, sentia
que havia um obstáculo no caminho de seu desenvolvimento: o ultrapassado
.sistema feudal. A classe média compreendia que seu progresso estava bloqueado
pela Igreja Católica, que era a fortaleza de tal sistema. A Igreja defendia a
ordem feudal, e foi em si mesma uma parte poderosa da estrutura do feudalismo.
Era dona, como senhor feudal, de cerca de um terço da terra, e sugava ao país
grande parte de suas riquezas. Antes que a classe média pudesse apagar o
feudalismo em cada país, tinha de atacar a organização central — a Igreja. E
foi o que fez.
A luta tomou um disfarce religioso. Foi denominada
Reforma Protestante. Em essência, constituiu a primeira batalha decisiva da
nova classe média contra o feudalismo. acessado em 16/06/2013